Leis suntuárias no Japão da Era Edo

Em linhas gerais, leis suntuárias (奢侈禁止令 ou 奢侈禁止法, em japonês) são conjuntos de regulações que têm como objetivo limitar o dispêndio de capital e, por consequência, o estilo de vida de um ou mais grupos sociais. Podem ser motivadas por vários fatores, como escassez de matéria-prima (tornando os itens derivados preciosos e concorridos), religiosidade (como na Idade Média) ou status (o mais comum dos casos).

Hoje, é incomum ver esse assunto ser discutido, uma vez que a industrialização e o capitalismo tardio trouxeram uma descentralização do poder, de forma a ser impensável que uma autoridade possa restringir diretamente os gastos e o consumo em geral no interior de regime democrático. 

Neste artigo, trataremos de uma época e de um local muito específicos em foram feitas promulgações com efeito legal e passíveis de punição, embora seja difícil encontrar relatos de aplicações reais de medidas punitivas, demonstrando a ineficácia e a dificuldade em cercear indivíduos que, cada vez mais, prezavam por sua liberdade, aqui entendida como o direito de levarem suas vidas sem interferência política.

O Japão da Era Edo (1603-1868) se torna interessante no que tange às leis suntuárias por sua forte rigidez na organização social, associada a um número extenso de éditos que descreviam em minúcias todos os aspectos da vida de uma pessoa: dos materiais com os quais uma casa podia ser construída aos brinquedos que uma criança podia ter, as leis suntuárias durante o xogunato Tokugawa merecem uma atenção extra.

É pertinente notar que a visão de um Japão feudal é problemática, uma vez que os níveis populacionais de Edo (atual Tóquio) impressionam, tendo sido a maior cidade do mundo no século XVIII, além de apresentar taxas bastante altas de urbanização e de alfabetização. Esse desenvolvimento não foi atingido senão por um amplo planejamento dos primeiros regentes Tokugawa, responsáveis por pacificar um território segmentado por guerras e conflitos. Conhecidos por sua implacabilidade, os xoguns Tokugawa se esforçaram para ampliar o poderio nipônico, o que incluía manter a ordem social.

Nihonbashi, clearing after snow, de Utagawa Hiroshige (1837-1840)
Uma visão bem diferente do comumente pensado sobre a Era Edo
Fonte: Brooklyn Museum

No que diz respeito a essa temática, embora tivesse sido profundamente influenciado pela cultura chinesa desde a Era Nara, quando comissários foram enviados à China com a clara missão de copiar tudo, da arquitetura aos costumes, havia algo que diferencia profundamente do modelo de sociedade chinês: enquanto nesta havia um profundo respeito pela meritocracia, a exemplo dos célebres exames de admissão para as escolas imperiais, os japoneses atribuíam grande valor para a hereditariedade e para a ancestralidade, o que chamamos de piedade filial. Em uma sociedade pautada na transmissão hereditária, não há espaço para mobilidade. O status de um indivíduo é obtido no momento de seu nascimento e não há meios de romper com ele.

No Japão dos Tokugawa, quatro classes de cidadãos “comuns” eram encontradas: samurais, fazendeiros, artesãos e mercadores. Acima deles estavam os daimyō(proprietários de terras), o xogum, a Corte Imperial e o Imperador. Cada pessoa pertencia a um ke (家, “família, guilda”), regido sempre pelo filho primogênito. Mulheres poderiam sair de um ke e entrar em outro através do casamento, porém, relacionamentos entre classes diferentes não era incentivado e chegou a ser proibido, evitando, assim, uma quebra nas separações do sistema. 

Mas o que chama atenção no caso japonês de criação de leis suntuárias é o fato de que elas não só limitavam o consumo, mas também diziam que a avareza era igualmente ruim. Durante as procissões do sankin kōtai (参勤交代), sistema de alternância obrigatória entre a província de um daimyō e Edo, deveria ficar claro o status do líder da família, que não deveria “economizar”, mesmo que isso significasse contrair empréstimos e gastar fortunas, considerando que era preciso levar inúmeros criados, roupas e utensílios. Além disso, manter duas casas (sua mulher e filhos deveriam permanecer sempre em Edo) levou muitos daimyō à falência ou ao endividamento.

Daimyo Procession at Kasumigaseki in Edo, de Utagawa Hiroshige II (1863)
Créditos: Los Angeles County Museum of Art.

A Corte Imperial também foi alvo de inúmeras leis suntuárias promulgadas pelo xogum a fim de ofuscar a importância do Imperador, ainda que fosse necessário garantir que ele continuasse no posto e pudesse, assim, legitimar a autoridade do real regente, isto é, os governantes Tokugawa. Para as classes mais baixas, como os camponeses, chegou-se ao nível de restrições na aquisição de tesouras para unhas e espelhos, na quantidade de arroz (que, ironicamente, era produzida por eles) e no consumo de saquê, totalmente desincentivado.

Por volta de 1721, havia um número impressionante de leis suntuárias. Contudo, essa expressividade é bastante sintomática de uma sociedade que começa a apresentar graves rupturas. Afinal, se há a necessidade de regular é porque algo foge do esperado. Leis suntuárias são rolhas que podem até parecer estancar o vazamento, mas que, na verdade, criam mais pressão e serão violentamente arremessadas quando o dique romper. 

Em se tratando do Japão da Era Edo, embora fossem os samurais a classe mais privilegiada, não eram, nem de longe, os mais ricos. Isso porque em uma nação pacificada, uma classe guerreira se torna ociosa, mas, diferente da nobreza, não possuem capital acumulado e não se beneficiam do recolhimento de impostos. Pelo contrário, muitos deles pagavam tributos aos seus daimyō pelo uso da terra, por sua vez arrendada aos camponeses. Acontece que com o aumento do custo de vida, influenciado pela urbanização dos gostos das elites, manter um estilo de vida adequado tornou-se insustentável. 

Por outro lado, os mercadores enriqueceram quase da noite para o dia com as fortunas deixadas pelos daimyō durante suas procissões, além de xoguns e atendentes mais e mais exigentes e suntuosos. Sob a imposição de leis suntuárias, os mercadores eram proibidos de mostrar poder ou riqueza, contudo, chegou-se a um ponto em que alguns se tornaram tão ricos e poderosos que raramente seriam punidos por suas ostentações.

Retrato do ator de kabuki Ichikawa Danjurō VIII, feito por Utagawa Kunisada.
Danjurō VIII e seu pai, Danjurō VII, eram conhecidos por seu estilo de vida luxuoso e ostentatório. Danjurō VII foi um dos poucos exemplos de punição por violações de leis suntuárias. Sua casa foi demolida e ele foi expulso de Edo por 8 anos durante 1842 e 1850.

Em Nippon Eitaigura (日本永代蔵, 1688), Ihara Saikaku (井原西鶴) descreve algumas dessas demonstrações com certo desconforto, ele mesmo descendendo de uma família de ricos comerciantes de Osaka. Em um certo momento da narrativa, quando fala dos itens vendidos de uma loja de roupas em Quioto, ele menciona que:

(…) Eles estão costurando maravilhosos e coloridos quimonos de verão. Quando se olha para esses trajes, vê-se que o material mais externo de gaze de seda branca foi dobrado e utilizado como forro, intercalado por duas camadas de crepe de seda escarlate, criando um quimono de três camadas. As mangas e a gola foram acolchoadas com estofos de seda. Nada jamais visto em outros tempos. Para ir além disso, eles teriam que usar vários materiais com técnica de tecelagem chinesa como roupas cotidianas. As recentes leis de vestuário foram promulgadas para todas as províncias e para todas as pessoas. Caso se pense um pouco sobre essa decisão, perceber-se-á que é necessário ser grato a elas. É desagradável ver um comerciante usando sedas boas. Ponjé lhes cai muito melhor. Mas roupas de bom gosto são essenciais para o status de um samurai e mesmo um samurai que está destituído de servos não deve se vestir como uma pessoa comum.

(SAIKAKU apud SHIVELY, p. 125, tradução minha)

Nesse trecho, fica extremamente evidente os ideais neoconfuncionistas de organização social e da importância de manter-se de acordo com a classe a qual pertence. O vestir-se é naturalmente associado ao status do indivíduo na pirâmide social, como se fosse algo muito evidente e ontológico, quando, na verdade, se trata de uma artificialidade criada pelo poder ligado às elites.

Como forma de aliviar essas pressões, foram criados os distritos dos prazeres (遊廓 yūkaku): Shimabara, em Osaka; Shinmachi em Quioto e o mais célebre, Yoshiwara, em Edo. Nesses território, estavam suspensas as leis suntuárias, criando um espaço legalizado no qual os mercadores podiam publicamente demonstrar seus gostos, entretenimentos e influências. Estava liberado o comércio sexual, os espetáculos de Kabuki, os jogos polêmicos e, igualmente, os espetáculos vestimentares. 

Como no ukiyo-e de Utagawa Hiroshige II, datado de 1857, homens e mulheres abusam da criatividade e da ousadia em seus trajes, provavelmente muito diferentes do que usavam nas demais localidades de Edo. Mas, como esperado, essa contenção não durou por muito tempo conforme os mercadores ficavam mais e mais ricos, bem como conscientes de seu poder.

Nakano street in the Yoshiwara, de Utagawa Hiroshige II (1857)
Créditos: Victoria and Albert Museum, London.

Os anos que antecedem o fim do xogunato Tokugawa são bastante representativos de uma sociedade instável que ansiava por mudanças, sendo a vestimenta e os costumes apenas uma pequena face desse movimento que culminaria na Restauração Meiji. A ineficácia de leis suntuárias também nos indica que o desejo por novidades e a sede por status são propulsores da vontade individual, que, aliada ao dinheiro, se transforma em uma força incontrolável. O maior contato com o Ocidente, imperialista e expansionista, certamente adicionou mais um fator a essa equação, apresentando novos produtos e formas de ver o mundo até então pouco difundidas no Japão.

Referências bibliográficas

SANTOS, Rafael Felipe dos; SPAREMBERGER, Alfeu. “Leis suntuárias no Japão: o papel da moda na manutenção do regime Tokugawa e da sociedade do Período Edo”. In: XXVI Congresso de Iniciação Científica da Universidade Federal de Pelotas, 2017.

SHIVELY, Donald H. Sumptuary regulation and status in early Tokugawa Japan. Harvard Journal of Asian Studies, Cambridge, v.25, p. 123 – 164, 1964-1965.

VAPORIS, Constantine Nomikos. Voices of early modern Japan: contemporary accounts of daily life during the age of the shoguns. Santa Bárbara: Greenwood, 2012.

Texto originalmente publicado pelo autor no Portal JAPONI.


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