O público que começou a acompanhar meu trabalho há pouco conheceu uma fase em que me dedico a pesquisar sobre moda e estética japonesa; porém, houve uma fase, lá na minha graduação em Letras, em que produzi alguns materiais tendo a literatura como grande área. Gostaria então de falar hoje sobre um artigo publicado por mim em 2018 junto ao Prof. João Luís Ourique (UFPel) na revista Olho d’Água (UNESP/São José do Rio Preto) e que tive a oportunidade de revisitar nostalgicamente.
O texto “Minotauro vs. Godzilla: sincretismos greco-nipônicos em O único final feliz para uma história de amor é um acidente, de João Paulo Cuenca“, como o próprio título já diz, analisa alguns aspectos culturais nesse livro de 2010 publicado pela Companhia das Letras. O único final feliz para uma história de amor é um acidente fez parte de um ambicioso e milionário projeto chamado “Amores Expressos”, no qual uma série de escritores foram enviados a diferentes localidades com o objetivo de produzir, baseados em suas experiências de trinta dias, um romance inédito e que incorporasse características dos locais visitados. Surgiram vários problemas relacionados a prazos de entrega de autores que “travaram” na hora de escrever, além de limitações no orçamento, que ultrapassou (em muito) a quantia inicial. Como consequência, nem todos os 17 títulos foram publicados.
A obra de Cuenca nos interessa particularmente, pois é ambientado na nossa amada Tóquio, representada de uma maneira bastante singular e “estrangeira”, ainda que todos os personagens sejam japoneses. Esse retrato caótico, por vezes até sufocante, é enfatizado no trailer produzido para o livro:
Comento um pouco sobre essa mistura insana e atordoante no artigo que escrevi analisando o romance, apresentando algumas das várias referências à cultura clássica grega que aparecem lado a lado de estereótipos de cultura japonesa, como a poesia haiku e tanka, o peixe fugue Godzilla. Não limitado a isso, uma das protagonistas, de nome Yoshiko, é uma boneca robótica feita sob medida e descrita como “a boneca mais cara do Japão”. Seu processo de nascimento e amadurecimento, bem como sua performance tentando assimilar a “cultura humana” está em constante diálogo com o mito da criação de Pandora. Através dos olhos e das incompreensões de Yoshiko, indignamo-nos, questionamo-nos e repensamos diversos aspectos do nosso cotidiano e do nosso modo de agir. É pertinente, então, que a única personagem não-humana seja a mais interessante, perspicaz e, por vezes, crítica.
Yoshiko é também a forma de Cuenca denunciar a própria artificialidade e impossibilidade da “Amores Expressos”, que inevitavelmente resultaria em produtos rasos, afinal, como poderíamos pretender entender séculos de história local em apenas um mês? Assim, ao evocar a riqueza do passado greco-latino, O único final feliz para uma história de amor é um acidenteconfronta seu leitor com a própria instabilidade e complexidade da cultura. Parece intentar nos dizer que, quando acuados por uma inundação de referenciais que desconhecemos por completo, lançamos mão daquilo que temos, buscando traçar paralelos e fazer comparações que nos ajudem a encontrar um porto-seguro. Aquele famoso ditado: somos todos criações do nosso local e da nossa época, né? Ao tentar compreender outra cultura, cair em condicionamentos ou estereótipos é muito fácil; o ser humano é um ser limitado. Mas sabendo dessas limitações, podemos sempre almejar ir além.
Essa é uma das mensagens que captei do livro de Cuenca. Confesso que, ao reler meu artigo, fiquei com vontade de reler o romance e analisá-lo mais uma vez, quase quatro anos e um mestrado depois! Deu saudade daquele prazer que só a literatura nos proporciona, de nos levar da Grécia antiga ao Japão clássico na mesma página, de ver o mundo pelos olhos de uma boneca e de cair nas contradições que, conquanto não sejam nossas, se tornam facas que nos ferem também.
Deixo abaixo a referência do artigo e convido vocês a lerem-no na íntegra! Não se esqueçam de me contar o que acharam!
Referências bibliográficas
DOS SANTOS, R. F.; OURIQUE, J. L. P. Minotauro vs. Godzilla: sincretismos greco-nipônicos em O único final feliz para uma história de amor é um acidente, de João Paulo Cuenca. Olho d’água. São José do Rio Preto, v. 10, n. 2, p. 79-91, 2018.
Texto originalmente publicado pelo autor no Portal JAPONI.
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