Talvez seja porque passei 34 meses estudando a marca; porém, as coleções de Kunihiko Morinaga, temporada após temporada, sempre me deixam estupefato pelas infinitas possibilidades de criação disponíveis em um mundo no qual temos a sensação de que tudo já foi visto ou feito.
Digo isso porque assisti hoje de manhã ao desfile de outono/inverno 2022-23 da ANREALAGE, disponibilizado minutos antes em uma première internacional dentro da Semana de Moda de Paris. E sim: foi surpreendente. Quando o tema da coleção foi anunciado há alguns dias no Instagram da marca, já fiquei atento para a parceria entre a ANREALAGE e a JAXA, a Agência Japonesa de Exploração Aeroespacial. Uma vez que na minha dissertação de mestrado eu falo sobre como Morinaga aplica ideias advindas de um tecno-animismo para discutir os colapsos e rupturas das relações entre humanidade e natureza no Antropoceno, essa colaboração em um projeto intitulado “PLANET” não poderia estar mais dentro da minha temática, certo?
Certíssimo. A apresentação de outono/inverno 2022-23 da ANREALAGE se iniciou no centro de treinamentos da JAXA, que simula a superfície lunar. As modelos, sob gravidade reduzida e com redomas transparentes cobrindo suas cabeças, “desfilaram” trajes inflados que, como Morinaga comentou posteriormente no making of, não tiveram no corpo humano seu ponto de partida, mas sim na própria silhueta dos trajes espaciais.
Em um segundo momento, após um take em que nosso planeta Terra aparece com o azul belíssimo dos enormes oceanos que cobrem sua superfície ressaltado, vimos os mesmos trajes “desinflados”. Segundo o designer, isso é obra da gravidade. Ela é responsável por “puxar o tecido”, conferindo-lhe drapeados e franzidos únicos. Parte da ideia de um tecno-animismo é fazer coexistir humanidade, natureza e tecnologia, e isso parece ser uma força motriz nas produções do designer.
De modo muitíssimo interessante, Kaoruko Sakamoto, da diretoria do departamento de Human spaceflight technology, diz pensar que “o espaço é algo que não pode ser totalmente entendido através das lentes da ciência e da tecnologia apenas”. Sakamoto relata ter ouvido vários testemunhos de astronautas que, durante suas missões no espaço, tomaram consciência de serem “terráqueos”, isto é, um sentimento que transcende o conceito limitado de nacionalidade. Mais para o fim do vídeo, Morinaga afirma que “a situação global mudou, de modo que colocar a Terra como tema parece ainda mais significativo e quase como uma missão”.
Não acho que ele esteja falando dos recentes conflitos no leste-europeu, afinal, o material provavelmente já estava pronto bem antes. Considerando os comentários feitos sobre as três coleções anteriores da marca, “HOME”, “GROUND” e “DIMENSION”, acredito que ele tenha se referido justamente à necessidade de revermos nossos referenciais, em especial a forma como sentimos e existirmos no mundo, abrindo nossa sensibilidade para as incríveis potencialidades que ainda estão para ser descobertas. Porém, Morinaga nos dá uma espécie de alerta de que as coisas precisam mudar com certa urgência, pois as separa ções rígidas que traçamos diariamente estão mais e mais insustentáveis.
Em “PLANET”, ao tentar cruzar as fronteiras entre a Terra e a Lua, não se falou de deixar nosso planeta para habitar outro lugar. Pelo contrário, através da moda, a ANREALAGE e a JAXA estão alinhadas em dizer que o universo é um só e que somos habitantes dele, tanto faz se aqui ou no satélite natural que nos orbita. Uma formidável coleção, de peças com um louvável trabalho de modelagem, construindo itens modernos, repletos de sobreposições interessantes e usáveis no dia a dia. E, ainda, com o desenvolvimento de uma fibra óptica adaptada para tecidos que permite que a luz passe naturalmente por ela, interagindo com transmissores remotos para receber e mostrar informações e dados. O que mais será que veremos nas próximas temporadas?
Texto originalmente publicado pelo autor no Portal JAPONI.
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