Nishida Kitarō (1870-1945) ainda é um autor pouco conhecido do público brasileiro. Na verdade, é preciso dizer que temos pouco ou nenhum contato com a filosofia japonesa, especialmente se comparado à europeia ou à estadunidense.
Isso pode ser devido, parcialmente, à jovem idade desse campo acadêmico no Japão. Até a Era Meiji (1868-1912), a palavra "tetsugaku" (哲学) não existia, tendo sido mais um dos neologismos criados no âmbito do programa nacionalista de internacionalizar a sociedade e a cultura nipônicas. Dentre as muitas transformações, caóticas e velozes, uma delas foi a introdução de um pensamento científico-filosófico e Nishida Kitarō se insere na geração pioneira que primeiro tentou formular uma filosofia adequada à história local em vez de uma mera aplicação de autores europeus.
Nishida teve uma trajetória conturbada, repleta de tragédias, mortes e decepções. Seu traço filosófico deixa entrever parte desse percalço, amparado também em sua prática Zen budista, que o acompanhou durante os momentos mais difíceis da vida.
Em 1911, é reconhecido por sua primeira obra de peso. Zen no kenkyū (善の研究, publicado em português pela editora Phi sob o título “Ensaio sobre o bem”) trouxe uma revisão do conceito de experiência pura de William James, apropriado e relido por Nishida como algo mais próximo do cotidiano e atingível por meio da prática incessante.
Mas hoje dessa vez eu gostaria de falar sobre um curto ensaio lançado onze anos antes, em 1900, intitulado Bi no Setsumei (美の説明, lit. “explicação da beleza”). Embora sua brevidade possa parecer torná-lo simples, Nishida relata com objetividade e sutileza o que entende ser o belo e de como somos capazes de apreendê-lo.
O que é a Beleza?
A primeira frase do texto já lança ao leitor uma indagação que consiste talvez na base mais primordial da Estética, divisão da Filosofia preocupada em responder a, não somente, essa questão. Nishida comenta que por muito se considerou a beleza como um tipo de prazer (快楽 kairaku), conquanto seja essa uma verdade apenas parcial, uma vez que não cremos ser a bebida ou a comida prazeres estéticos, por exemplo. Algo pode ser prazeroso e não ser, necessariamente, estético.
Ao citar Henry Rutgers Marshall, adiciona-se o argumento de que o prazer estético deve ser um prazer estável, isto é, “não limitado somente ao momento em que é sentido, mas desfrutado da mesma forma quando é relembrado depois” (p. 215).
Entretanto, Nishida não se contenta com essa explicação. Isso porque ainda se faz necessário entender qual é a característica especial do senso da beleza. Para Kant, conforme cita o autor nipônico, “o senso da beleza é o prazer desassociado de um ego, é “o prazer do momento, quando se esquece do próprio interessem como as vantagens e desvantagens, perdas e ganhos” (p. 216).
De fato, a teoria kantiana afirmava ser o julgamento estético algo desprovido de interesse, permitindo o livre jogo entre as faculdades (conhecer, julgar, apetecer). A crítica de Nishida a Kant é o teor racional, uma vez que, para este, os julgamentos estéticos são capazes de produzir conhecimento e, assim, o Homem deveria constantemente aprimorar sua sensibilidade, pois estaria simultaneamente aprimorando sua razão.
Para além das dualidades
O pensamento kantiano pressupõe uma epistemologia necessariamente dualista, em que sujeito (aquele que vê) e objeto (aquele que é visto) estão separados. Existe um ser que está apto a conhecer aquilo que está ali para ser conhecido. Nishida diz ser a beleza equivalente à verdade e, desse ponto de vista, não pode ser acessada por uma verdade intelectual (論理的な真理 ronriteki na shinri), mas apenas por uma verdade intuitiva (直覚的な真理 chokkakuteki na shinri).
Em outras palavras, é uma crítica à ideia de que a lógica seria suprema à intuição, elemento que constitui, em Nishida, um dos pilares. Em seus conceitos-chave posteriores, como basho (場所) e zettai mu (絶対無), a importância da intuição é notável, sendo ela atingida “quando nós nos separamos do eu e nos tornamos uno com as coisas” (p. 217), um estado chamado de muga (無我). Empréstimo do Budismo, muga é a condição do não-eu (anātman em sânscrito), isto é, a percepção de que não existe um eu fixo nem independente, mas que, pelo contrário, existe em uma complexa rede de causalidades.
O estado de muga e a verdade intuitiva que dele deriva é capaz de “penetrar nos profundos segredos do universo”, logo, “a beleza que evoca esse sentimento de muga é a verdade intuitiva que transcende a discriminação intelectual” (p. 217). A beleza é, portanto, o sentimento de muga.
Apreciamos a beleza a partir do instante em que nos unimos ao objeto, superando as dicotomias e dualidades. Diante da beleza, somos transportados pela verdade intuitiva para um estado de simples e pura contemplação das coisas como elas são, o que Nishida chama de “a verdade vista com os olhos de Deus”. Mas esse sentimento é apenas momentâneo, o muga da beleza é passageiro, conquanto exista um muga considerado eterno: o da religião. Nishida considera que o muga da beleza e o da religião partilham da mesma natureza, diferindo unicamente em sua durabilidade. Da mesma forma, a moralidade também está fundada nas mesmas raízes, isto é, na abnegação do eu, ainda que seja a que mais pertence ao mundo da discriminação, uma vez que a ideia de obrigação está intimamente ligada à distinção entre o eu e o outro, entre bem e mal.
Mas ao praticar com afinco a moralidade, é possível desfazer essas separações, na medida em que moralidade e religião se tornam indistinguíveis, manifestações do muga tanto quanto a beleza.
Muga é, portanto, um dos conceitos inovadores que Nishida Kitarō traz à Estética, embora nunca tenha, ele mesmo, elaborado uma teoria estética. Ainda assim, podemos depreender que a a ausência de muga é um impeditivo para a contemplação do belo. Sem nos desligarmos da ideia de um eu fixo e independente, jamais seremos capazes de conhecer a verdadeira beleza, pois sempre estaremos subordinados ao intelecto e à razão. Inclusive, o distanciamento da natureza e a perda da religiosidade são sintomas de um enfraquecimento na capacidade de reconhecer e apreciar o belo, consequências de uma modernidade na qual o ser humano crê poder compreender o mundo apenas por meio das palavras e do pensamento lógico.
Referências
ODIN, Steve; NISHIDA Kitarō. “An Explanation of Beauty. Nishida Kitarō’s Bi No Setsumei.” Monumenta Nipponica, vol. 42, n. 2, 1987, pp. 211–217. JSTOR, www.jstor.org/stable/2384952.
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