Ano passado, chegou até mim um vídeo de um influencer descendente de japoneses, com um número considerável de seguidores (574 mil!). O perfil era um pouco mais do que vemos atualmente: vídeos rápidos, estilo TikTok, com informações rasas e sem fonte confirmada.
O título do vídeo em questão trazia algo como “estilos estranhos da moda do Japão”, o que por si só já faria qualquer pesquisador do campo da cultura gritar em histeria. Resolvi então fazer o que ele deveria ter feito: pesquisar e explicar em detalhes as origens de cada estética, entendendo que o feio, tanto quanto o belo, é cultural e temporalmente localizado, podendo ser usado como instrumento de subversão (como é o caso). Falar de subculturas urbanas sempre é falar de uma sociedade em tensão, tão, mas tão pressurizada, que o escape se manifesta radicalmente, apoiando-se no choque para forçar a sociedade a se questionar. Dito isso, vamos elucidar alguns comentários absurdamente superficiais feitos durante o tal vídeo:
O primeiro “estilo estranho” apresentado são as ganguro (ガングロ), um grande termo guarda-chuva que abriga também as conhecidas gyaru (ギャル). Para o influenciador, essa é a expressão “mais bizarra” por conta do forte bronzeamento artificial contrastando com sombras brancas nos olhos, cabelos descoloridos e roupas chamativas. Sharon Kinsella, no livro Schoolgirls, Money and Rebellion in Japan (2014), comenta sobre as ganguroe seu surgimento por volta da década de 90, um período conhecido no Japão como a Década Perdida, no qual a bolha econômica japonesa, inflada pela especulação imobiliária e otimismo exagerado, estoura e lança milhares de pessoas ao desemprego. Em razão disso, os jovens eram bastante pressionados a seguir carreiras tradicionais, nunca sair demais da linha, levando uma vida austera e simples. O famoso fantasma do “não se destaque da multidão”. Isso incluía a aparência física, que deveria estar o mais próximo possível do ideal nipônico: cabelos escuros, pele extremamente branca, maquiagem natural. As ganguro aparecem então com cabelos loiros (ou vermelhos, verdes, azuis, roxos…), um bronzeado muito artificia – alaranjado – e olhos brancos como os de um fantasma.
Kinsella insere ainda um importante argumento, discutindo a influência da cultura preta estadunidense e o sentimento de opressão racial compartilhado por muitas meninas que não se identificavam com os padrões de beleza impostos pelas revistas e mídias hegemônicas, majoritariamente dos EUA ou da Europa. Ícones como Naomi Campbell, Bobby Brown e Whitney Houston circularam entre as ganguro, trazendo novas referências que, como sempre, são transmutadas pelas particularidades da cultura nipônica. Para essas meninas, quanto mais exagerado, mais chocante, mais artificial, melhor: cílios enormes, sapatos de plataforma, bolsas enormes, estampas gritantes. Tudo o que fosse contra à representação tradicional da mulher japonesa.
O segundo estilo citado no vídeo são as “Lolis”, uma abreviação usada erroneamente para se referir às Lolitas (ロリータ). Além disso, o influenciador diz que “o conceito é basicamente o fofo“, “que elas são como bonecas que parecem ter saído de um anime”. Sinceramente, chega a ser ultrajante à história e à significação do movimento que ele seja resumido dessa forma. Em novembro de 2021, discuti em um episódio inteiro de podcast sobre as Lolitas. e vale a pena ouvir para entender com mais detalhes o por quê da minha indignação. De modo parecido com as ganguros Lolitas também se consolidam durante a crise econômica, política e social do fim dos anos 80 e, principalmente, dos anos 90. Jovens que se recusavam a crescer e a encarar uma vida cheia de compromissos, obrigações e infelicidades, buscaram na nostalgia da infância um refúgio.
O fofo é sim um elemento muito importante, mas não se trata do fofo como entendemos no Ocidente. O conceito de kawaii (可愛い) é bastante complexo, estudado por pesquisadores sérios, e que tem conexões não só com a estética, mas também com a política externa japonesa, bem como com decisões financeiras e mercadológicas (indicação de leitura: From a Word to a Commercial Power: A Brief Introduction to the Kawaii Aesthetic in Contemporary Japan). Existem muitos subtipos de Lolitas, mas o objetivo nunca foi que assemelharem a personagens de anime. Antes de tudo, a existência da Lolita em uma sociedade majime – em que adultos devem se portar como adultos – é um símbolo constante de resistência, que faz reviver a criança interior que todos nós temos, porém, que talvez esteja soterrada sob uma pilha de processos ou contas a pagar.
Por fim, o influenciador menciona os yankii (ヤンキー), também datados da década de 80/90 (já deu pra perceber a importância da contextualização histórica/social, né?). O vídeo os explica como “os malandros do Japão”, com roupas todas brancas ou pretas, jaquetas com dragões atrás ou o nome da “gangue”. Conhecidos pode suas atitudes irreverentes, os yankiise rebelaram contra as boas maneiras nipônicas. Falando alto, usando palavras chulas, portando-se agressivamente (contradizendo o estereótipo de que japoneses evitam conflito) e às vezes fazendo uso de cigarro e álcool em público, os yankii logo ganharam uma fama negativa e problemática. De novo, devemos entender a eclosão dessa subcultura como uma despressurização social, como aconteceu com os punks na Inglaterra. Os yankii estão relacionados a outras tribos, como os bōsōzoku(暴走族), esses sim célebres pelas jaquetas estilizadas, calças estufadas e motos turbinadas.
Podemos ver que tanto as ganguro quanto as Lolitas e os yankii são, antes de tudo, uma rebeldia em relação aos valores tradicionais impostos pela sociedade. Por eles, a moda foi apropriada como um artifício poderoso devido à sua capacidade de produzir significados muito visíveis, facilmente identificados e muito adequados ao mundo cada vez mais conectado, inundado por fotografias e vídeos disponíveis mundialmente quase ao mesmo tempo. Não é a toa que revistas como a FRUiTS prosperam nos anos 90 e 2000, estampando a riqueza das subculturas urbanas de Tóquio. Foi ali, em uma das maiores cidades do mundo, que as rachaduras provocadas pelo conflito geracional entre uma população que viveu as angústias da Segunda Guerra Mundial e uma juventude que desconhecia essa realidade e, portanto, não via sentido em várias restrições, finalmente explodiu nos bairros de Ginza, Harajuku, Odaiba, Shibuya, Shinjuku, dentre outros.
É um pouco perturbador como, por exemplo, a Era Vitoriana é demasiadamente romantizada, quando as mulheres da nobreza usavam pós extremamente alvos à base de chumbo e, muitas, ficavam com expressões fantasmagóricas devido à corrosão causada pelo ativo químico. Contudo, esse estilo nunca é descrito como estranho ou bizarro, talvez porque, para nós, a Era Vitoriana esteja dentro do universo cognoscível. O Japão, no entanto, faz parte do desconhecido, sendo constantemente exotizado, lembrando de que ser descendente brasileiro não exime as pessoas de cometerem orientalismos, afinal, elas vivem em um contexto ocidentalizado e eurocêntrico.
Dentro desse imaginário limitado, é claro que costumes como pintar os dentes de preto (ohaguro, お歯黒), raspar totalmente as sobrancelhas (hikimayu, 引眉), bronzear a pele exageradamente e usar vestidos cheios de laços vai soar bizarro. É assim que aprendemos: o que conhecemos é natural, o que desconhecemos é estranho. Mas moda japonesa não é bagunça. Cultura japonesa não é bagunça. Estamos aqui estudando com seriedade, não porque queremos ser os donos da razão, mas porque amamos muito o que estudamos e o mínimo que podemos fazer é conferir dignidade e contextualização ao nosso objeto de pesquisa. Façam vídeos, espalhem conhecimento, mas façam com responsabilidade, ainda mais quando se fala a um público de mais de meio milhão. Estudem a pauta, procurem alguém que conheça mais sobre o assunto, verifiquem a informação em fontes confiáveis. Sem isso, jamais afastaremos a ignorância científica e cultural que nos ronda insistentemente nos últimos anos.
Referências Bibliográficas
Kersten, Joachim. “Street Youths, Bosozoku, and Yakuza: Subculture Formation and Societal Reactions in Japan.” Crime & Delinquency, vol. 39, no. 3, July 1993, pp. 277–295, doi:10.1177/0011128793039003002.
Kinsella, Sharon. Schoolgirls, money and rebellion in Japan. London New York: Routledge, 2014.
Monden, Masafumi. Japanese fashion cultures: dress and gender in contemporary Japan. London New York: Bloomsbury Academic, 2015.
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